quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Correio Braziliense - 10/02/07

Gente que faz
Por Cláudio Ferreira

A curiosidade leva o homem a searas impressionantes. Derruba mitos, supera dificuldades e reverte o caminho que o destino parece, a princípio, traçar para cada um. Pois foi a curiosidade o combustível que moveu a carreira de Hermínio Bello de Carvalho, transposta agora para um perfil biográfico — felizmente, com o biografado ainda vivo. Menino pobre do Rio de Janeiro, um dos filhos de uma família grande, conviveu com figuras de proa da MPB desde a adolescência. Apaixonou-se pelo ambiente glamouroso dos artistas, descobriu-se também um deles e fez da luta por espaço para a música brasileira ao mesmo tempo seu ganha-pão e sua missão.

O livro foi publicado para comemorar os 70 anos de Hermínio, completados em 2005. E mostra que ele não perdeu a oportunidade de estar na época certa — adolescente nos anos 50 — na cidade certa. Era o que poderia ser chamado de “entrão”: fingia conhecer os artistas de prestígio da Rádio Nacional para conseguir entrada livre no auditório da Praça Mauá; aproximou-se de talentos como Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira e Radamés Gnatalli; foi “adotado” por famosos como Elizeth Cardoso.

Tudo o que ele tinha a oferecer era um pouco de conhecimento em poesia e música, além de simpatia e iniciativa. Começou como repórter de revista de celebridades, passou a radialista, palestrante, produtor de shows e discos, compositor, cantor e poeta com vários livros publicados. Mas se nada disso passasse à posteridade, seu nome estaria escrito no livro de ouro da MPB como descobridor de tesouros.

O mais famoso foi Clementina de Jesus. No início dos anos 60, ele viu a senhora negra, empregada doméstica, num bar chamado Taberna da Glória, cantando músicas de origem africana. Logo produziu um show para “apresentá-la” ao Brasil. “Rosas de Ouro”, em 1964, rendeu disco, e foi um marco na história da MPB. Clementina trocou a cozinha pela vida artística. De quebra, o show trouxe aos holofotes novamente Araci Côrtes, estrela do teatro musical dos anos 20 e 30 e revelou um compositor estreante, Paulo Cesar Baptista de Faria, o Paulinho da Viola.

Outra proeza? Hermínio reabilitou Cartola para o mundo artístico. O sambista, hoje lembrado com um dos maiores do gênero, era lavador de carros, tinha uma vida absolutamente distante da fama. Pois o “agitador cultural” o resgatou e o incentivou a abrir um bar, chamado Zicartola (Zica era a mulher do sambista), que se tornou palco de shows memoráveis de samba.

Na contabilidade de Hermínio Bello de Carvalho, o crédito é grande. Foi ele o idealizador do Projeto Pixinguinha, que, nas décadas de 70 e 80, levou artistas conhecidos a todas as regiões do país, a preços populares. Do mesmo modo que revelava novos cantores, como Simone, retirava da aposentadoria antigas estrelas da Rádio Nacional, como Zezé Gonzaga. Sempre com a preocupação de abrir espaços para a música que não era normalmente veiculada no rádio ou na televisão.

Personalidade forte no meio artístico rendeu a ele brigas famosas — alimentadas também pelos exageros alcóolicos. Brigas também foram constantes quando Hermínio teve que lutar contra a burocracia ou contra a falta de continuidade das políticas públicas para a área cultural. Calma, só para compor, com dezenas de parceiros do quilate de Pixinguinha, Paulinho da Viola e Martinho da Vila. Ele promoveu até parcerias póstumas, colocando letra em melodias de Villa-Lobos e Jacob do Bandolim, por exemplo, músicos que ele tinha conhecido. E era um bom anfitrião: até a norte-americana Sarah Vaughan freqüentou o apartamento dele no bairro da Glória.

O livro não se detém em aspectos da vida pessoal do compositor. Prefere listar suas atividades múltiplas: de “produtor” de um desfile da Estação Primeira de Mangueira a apresentador de programas culturais em uma emissora de rádio do Paraná. Brasília quase mereceu uma de suas empreitadas: ele apresentou a Oscar Niemeyer e ao então governador José Aparecido de Oliveira , em meados dos anos 80, o projeto de um super centro cultural (que seria chamado de Complexo Mário de Andrade), com espaços para música, artes visuais, cinema, biblioteca e culinária. Esbarrou num ponto — teria que morar na cidade por um tempo. O projeto morreu aí.

Em quase 50 anos de atividades artísticas, Hermínio teve a preocupação constante de registrar tudo o que fazia. Lutava para ter uma gravação(de um show ao vivo ou caseira), um livro, fotos, placas, qualquer documento que perpetuasse aquele empreendimento. O material, ele nomeava “resíduo cultural”. O perfil biográfico escrito pelo jornalista Alexandre Pavan pega este mote. Reduz o lado pessoal a “pílulas” de texto entre os capítulos, batizadas de “Herminices”. E procura registrar a carreira deste autêntico “bicão”, um dos enxeridos mais bem-sucedidos dos últimos tempos.