sábado, 3 de fevereiro de 2007

CartaCapital - 24/01/07


Enciclopédia de sons
Por Pedro Alexandre Sanches

A existência de uma bibliografia especializada que acompanhe a musica brasileira tem sido um ponto frágil constante em sua história. Se, por um lado, não é possível falar em resolução à vista, por outro é inegável que 2006 foi um ano de salto quantitativo e qualitativo para o setor. Às vésperas do Natal, obedecendo a previsíveis ditames mercadológicos, as editoras locais promoveram uma enxurrada de lançamentos de livros históricos sobre a música daqui. Conceitualmente, a locomotiva que puxa o comboio se chama “Coleção Revista da Música Popular” (editado pela BemTe-Vi, em parceria com a Funarte), um esmerado volume de 776 páginas que recupera, na íntegra e em formato facsímile, o conteúdo da revista de mesmo nome, coordenada entre 1954 e 1956 pelo crítico Lúcio Rangel. E o volume acende a questão: estudar e refletir sobre musica deixou de ser hábito de um país sempre celebrado como extremamente musical?

Reexaminada mais de 50 anos depois, a revista parece porta-voz de um momento de florescência, uma espécie de precursora involuntária da bossa nova, em termos gráficos, jornalísticos e bibliográficos. E evidencia as mudanças profundas que varreram essa área desde então. Fundamentalmente, a “Revista da Musica Popular” encarava seu objeto de interesse de modo multidisciplinar: os militantes do jornalismo musical da época se alternavam na escrita com colaboradores como os músicos Almirante, Ary Barroso e Guerra Peixe, os poetas Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes, os escritores Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, artista plástico Di Cavalcanti, a historiadora Mariza Lira, e assim por diante. "Não sei por que foi se dissolvendo aquele modo de trabalhar. Talvez as gravadoras, a comercialização, as vendagens mirabolantes entre os anos 60 e 90, as rivalidades", tenta decifrar uma das figuras empenhadas na reedição, Maria Lucia Rangel, filha de Lucio e hoje integrante da equipe da gravadora Biscoito Fino. ''Antigamente, todos se encontravam nos bares, conversavam sobre musica, literatura, cinema. Hoje, fazemos isso em casa, quando dá, com poucos amigos, sem a surpresa pela chegada de alguém que poderia acrescentar algo ao papo”. A leitura da antiga revista desvenda, às vezes, meandros curiosos.

No numero 14 (que seria também o último da publicação), um "jovem musicólogo" contestava um artigo anterior em que Manuel Bandeira praguejara contra o violão, em defesa do violino. Em tom respeitoso, mas veemente, a "carta ao poeta” denunciava o preconceito por trás da distinção que Bandeira fizera entre o instrumento "erudito" e o "popular". E a revista, ao publicar a carta, esclarecia: o estudo do poeta datava de 1924, e fora apenas republicado na revista. O jovem musicólogo, futura eminência parda do samba e da memória musical brasileira, se chamava Hermínio Bello de Carvalho.

Essa mesma história vai reaparecer em outro livro da atual safra, “Timoneiro - Perfil Biográfico de Hermínio Bello de Carvalho” (Casa da Palavra, 264 págs., mais CD inédito), do jovem jornalista Alexandre Pavan. Ali, fica-se sabendo que a interdisciplinaridade dos anos 50 era uma realidade até mesmo física: segundo Pavan, Lúcio Rangel, após ler a carta do desconhecido musicólogo de 21 anos, levou-o em pessoa à casa do poeta, para um contato cara a cara. E teria partido de Bandeira a sugestão de publicar a carta-resposta. Preciso e detalhista, o perfil é daqueles que convida à reflexão: trata-se de uma homenagem emotiva, mas, de modo análogo ao que o jovem Hermínio empregara com Bandeira, não deixa de ser incisivo ou de tocar em assuntos incômodos. Embrenha-se por situações controversas em que o perfilado se envolveu e chega a abordar, de modo sutil, a fase de íntima dependência entre Hermínio e o Estado, nos anos em que dirigiu a Funarte e elaborou trabalhos históricos como o Projeto Pixinguinha - como a narrativa explicita de modo contundente, em 1990 o então presidente Fernando Collor faria desmoronar num sopro muito do que Hermínio construíra na década anterior.


Se controvérsia e discrição andam lado a lado no livro de Pavan, integralmente apoiado pelo homenageado, o inverso ocorre com a vedete comercial da temporada, o consistente ensaio biográfico “Roberto Carlos em Detalhes” (Planeta, 504 págs.), assinado pelo historiador e jornalista Paulo Cesar de Araújo. O assunto tomou a mídia dita cultural no fim do ano, menos por seu valor intrínseco que pela desaprovação do biografado, que disse em entrevista coletiva que sua história é seu patrimônio e que só a ele caberia usá-lo. Os advogados de Roberto fizeram chegar à editora, na ultima sexta-feira 12, uma notificação extrajudicial pedindo a retirada de circulação do livro em cinco dias. Com 60 mil exemplares já colocados no mercado, a Planeta não acatou o pedido. "Os autores da notificação usam argumentos com os quais não concordamos. Pretendemos provar na Justiça que publicamos uma obra séria e respeitosa, à altura da grandeza do artista", diz Pascoal Soto, diretor editorial da Planeta. Segundo os advogados, a editora teria cometido os delitos de "invasão de privacidade", "ofensas morais" e "uso indevido da imagem" do cantor.

Embora travada em meio mais tradicional, a disputa faz lembrar outra simultânea, entre Daniela Cicarelli e o site YouTube, pelo menos no tópico "invasão de privacidade", que em certos momentos incomoda celebridades, mas quase o tempo todo ajuda a nutrir sua popularidade e a engordar seus patrimônios. Araújo procura defender seu trabalho, nitidamente construído com cuidado e recheado de apreciações positivas sobre o biografado:

– Isso aconteceu pela confluência de dois fatores, a interpretação distorcida que Roberto fez (apesar de não ter lido o livro, como afirma seu advogado) e a apropriação do caso pela mídia. Quando Roberto disse que o livro era sensacionalista e ofendia a ele e a pessoas queridas, segundo ele expostas ao ridículo, começaram as especulações sobre quais seriam as passagens do livro, um prato cheio para os fofoqueiros de plantão. O resultado é que o que é secundário no livro (as passagens da vida pessoal do artista) acabou se tornando tema central na mídia.

Pode-se argumentar que, em parte, o próprio autor abriu margem para contestações, uma vez que, por exemplo, aboliu qualquer crédito a frases, depoimentos e histórias que retirou dos arquivos da imprensa brasileira. As citações não identificadas confundem o leitor, pois não aparecem contextualizadas e transcrevem no tempo presente falas de personalidades já mortas. Araújo defende essa opção, dizendo que segue o modelo de autores como Ruy Castro e Fernando Morais, de listar as fontes apenas no final dos livros.

Mas a ironia maior do caso é que Araújo é também autor de um estudo fundamental que virou referência e tem colaborado para demolir preconceitos de classe e fronteiras entre a MPB dita "culta" e a musica mais "popular" do Brasil. Trata-se de “Eu Não Sou Cachorro, Não” (Record, 2000), uma defesa dos artistas apelidados de "cafonas", argumentada de modo sólido e sofisticado. O autor fala do paradoxo em que a zanga de Roberto o colocou: "Com Eu Não Sou Cachorro, Não, cheguei a brigar pelo reconhecimento de artistas para os quais as elites culturais sempre viraram as costas. E eis que me deparo com a oposição do mais importante de todos eles". Um certo descaso na documentação das fontes de pesquisa acomete também outro título, “Gonzaguinha e Gonzagão -Uma História Brasileira” (Ediouro, 382 págs.), da jornalista Regina Echeverria, um cruzamento corajoso e original das trajetórias de Luiz Gonzaga, o genial e autodidata "Rei do Baião", que se assumia como apoiador orgulhoso da ditadura militar, e de seu filho esquerdista, politizado e egresso da dita "MPB universitária". "Tratar ao mesmo tempo de musica, cultura, arte, paternidade, herança e conflito foi um desafio a mais", resume a autora.

Em seu livro, depoimentos e passagens extraídas de outros livros vêm dissolvidos na narrativa, o que Regina assume como erro involuntário: "Foi, certamente, ‘falha nossa’. Imaginei que esses trechos deveriam ter qualquer sinal gráfico que diferenciasse a entrada de textos alheios. Pretendo corrigir nas próximas edições".
Um colega de geração e convicções de Gonzaguinha merece uma biografia consentida à moda da de Hermínio Bello de Carvalho. “Travessia - A Vida de Milton Nascimento” (Record, 406 págs.) foi escrito por Maria Dolores, uma jovem jornalista mineira que conquistou acesso e apoio direto do biografado. O esforço resulta em trabalho amplo e minucioso, mas portador do dilema típico daquelas biografias que não querem problemas como os vividos pelo autor do ensaio não autorizado de Roberto Carlos: é pródigo em narrar os sucessos e as glórias de Milton, mas bem mais comedido com as dificuldades e os temas espinhosos.

Entre os pólos da biografia idílica de Milton e da aventura livre e não consenti; da do livro sobre Roberto encontra-se outro dos fatores que mantém em atraso a literatura biográfica no País. Se lá fora pululam biografias incontáveis, das mais às menos respeitosas, aqui tanto as biografias permitidas como as proibidas parecem cair em becos sem saída equivalentes, num tiroteio de temores judiciais e abusos ocasionais de parte a parte. Num extremo e no outro, mantêm-se travados a pesquisa e o estudo de uma história monumental que, afinal de contas, é coletiva, de interesse geral e de domínio publico. Desse ambiente acirrado emergem então iniciativas que, embora também relevantes, se caracterizam por ter menor envergadura e ambição, como os livros de entrevistas e compilações de artigos jornalísticos. É o caso da reedição de “Nada Será Como Antes – MPB Anos 70” (Senac Rio, 390 págs.), de Ana Maria Bahiana, que resgata boa parte do acompanhamento apaixonado da musica dos 70 pela jornalista.

Outro é o curioso “Estação Brasil - Conversas com Músicos Brasileiros” (Editora 34, 248 págs.), uma coletânea de entrevistas feitas pela jovem jornalista e tradutora argentina Violeta Weinschelbaum. Com perguntas que talvez não ocorressem a entrevistadores locais, ela aprofunda a compreensão sobre artistas brasileiros. Ao mesmo tempo, adota como ponto de partida obsessivo o imaginário tropicalista, o que faz refletir sobre o poder quase absoluto da Tropicália entre os admiradores não brasileiros da musica daqui.

Por fim, há o caso à parte da experiência de Gilda Mattoso em “Assessora de Encrenca” (Ediouro, 240 págs.). Ex-esposa de Vinicius de Moraes e assessora de imprensa de Caetano Veloso e Gilberto Gil por décadas, Gilda constrói um registro de memória despretensioso e potencialmente saboroso. Infelizmente, não segue o mote dado pelo título inspirado, e prefere descrever detalhes dos palácios e hotéis de luxo freqüentados pela MPB mundo afora a relatar as agruras e encrencas da vida nômade.

A grande diversidade obtida pelo contraste entre todos esses títulos recém-desovados denota uma trilha ainda titubeans: te e espinhosa na construção de uma historiografia da música brasileira, por vezes até sabotada por alguns dos que seriam os principais interessados em sua preservação. Mas da diversidade se faz também um o convite à volta da reflexão, e se espera que à enxurrada de Natal não se siga mais estiagem ao longo do ano inteiro.